Luís Vaz de Camões
S O N E T O S
1
Aqueles claros olhos que chorando
ficavam, quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?
Se terão na memoÌria, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia,
que torne a vê-los, na alma figurando?
Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?
Oh! bem-aventurados fingimentos
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
2
Amor eÌ um fogo que arde sem se ver;
eÌ ferida que doÌi e não se sente;
eÌ um contentamento descontente;
eÌ dor que desatina sem doer.
EÌ um não querer mais que bem querer;
eÌ um andar solitaÌrio entre a gente;
eÌ nunca contentar-se de contente;
eÌ um cuidar que ganha em se perder.
EÌ querer estar preso por vontade;
eÌ servir a quem vence, o vencedor;
eÌ ter com quem com mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contraÌrio a si eÌ o mesmo Amor?
3
Correm turvas as aÌguas deste rio
que as do ceÌu e as do monte as enturbaram;
os campos florescidos se secaram:
intrataÌvel se fez o vale, e frio.
Passou o verão, passou o ardente estio;
umas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados jaÌ deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem jaÌ sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não haÌ nela mais que o que parece.
4
O dia em que eu nasci morra e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o ceÌu se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao proÌprio filho não conheça.
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
as laÌgpirimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo jaÌ se destruiu.
OÌ gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
5
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tiraraÌ o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, laÌ me esconde
amor um mal, que mata e não se vê;
que dias haÌ que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e doÌi não sei porqueÌ‚.
6
Pede o desejo, Dama, que vos veja,
não entendo o que pede; estaÌ enganado.
E este amor tão fino e tão delgado,
que quem o tem não sabe o que deseja.
Não haÌ cousa a qual natural seja
que não queira perpeÌtuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afecto em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o cento desejar da natureza,
assim o pensamento (pela parte
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
7
Um mover de olhos, brando e piedoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso graviÌssimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indiÌcio da alma, limpo e gracioso;
um escolhido ousar; uma brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;
esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o maÌgico veneno
que pôde transformar meu pensamento.
8
Nunca em amor danou o atrevimento;
favorece a Fortuna a ousadia;
porque sempre a encolhida covardia
de pedra serve ao livre pensamento.
Quem se eleva ao sublime Firmamento,
a estrela nele encontra que lhe eÌ guia;
que o bem que encerra em si a fantasia
são umas ilusões que leva o vento.
Abrir-se devem passos à ventura;
sem si proÌprio ningueÌm seraÌ ditoso;
os princiÌpios somente a sorte os move.
Atrever-se eÌ valor e não loucura;
perderaÌ por covarde o venturoso
que vos vê, se os temores não remove.
9
VoÌs outros, que buscais repouso certo
na vida, com diversos exerciÌcios;
a quem, vendo do mundo os benefiÌcios,
o regimento seu estaÌ encoberto:
dedicai, se quereis, ao Desconcerto
novas honras e cegos sacrifiÌcios;
que, por castigo igual de antigos viÌcios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.
Não caiu neste modo de castigo
quem pôs culpa à fortuna, quem somente
creÌ‚ que acontecimentos haÌ no Mundo.
A grande experieÌ‚ncia eÌ grão perigo;
mas o que a Deus eÌ justo e evidente
parece injusto aos homens, e profundo.
10
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo eÌ composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as maÌgoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que jaÌ coberto foi de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
que não se muda jaÌ como soiÌa.
11
Verdade, Amor; Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
poreÌm, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que eÌ mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.
Doutos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso eÌ melhor ter muito visto.
Cousas haÌ i que passam sem ser cridas
e cousas cridas haÌ sem ser passadas,
mas o melhor de tudo eÌ crer em Cristo.
12
Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou-te a ti na terra sepultura,
por que me falte a mim consolação.
Eternamente as aÌguas lograrão
a tua peregrina formosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudes versos podem tanto
que possam prometer-te longa histoÌria
daquele amor tão puro e verdadeiro,
celebrada seraÌs sempre em meu canto;
porque, enquanto no mundo houver memoÌria,
seraÌ minha escritura [o] teu letreiro.